Tenho a mesma sensação da Raquel Rolnik: em termos de direitos humanos. estamos andando prá trás - vide USP, Cracolândia e Pinheirinhos - 'pressionante!!!!!.
Repetindo: Deus não passou escritura prá ninguém, toda propriedade começou com uma ocupação, invasão da terra...
O grave é que estão todos cada vez mais "distraídos" por bugigangas eletrônicas, futebol, Big Bosta e carnaval, DH não é mais "pauta", o pensamento da direita avança, a serpente choca seu ovo...
"É hora!..."
Ação no Pinheirinho viola direitos, diz relatora da ONU
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
O processo de reintegração de posse de Pinheirinho viola os direitos humanos. É
preciso suspender o cerco policial e formar uma comissão independente para
negociar uma solução para as famílias.
A opinião é da relatora especial da
ONU para o direito à moradia adequada, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik,
55, que enviou um Apelo Urgente às autoridades brasileira pedindo explicações
sobre o caso. Para ela, professora da FAU/USP, o país caminha para trás no
campo dos direitos humanos e a pauta da inclusão social virou "sinônimo
apenas da inclusão no mercado".
Nesta entrevista, ela avalia também
o episódio da cracolândia. Faz críticas do ponto de vista dos direitos humanos
e da concepção urbanística. Rolnik aponta para violações de direitos em obras
da Copa e das Olimpíadas e avalia que "estamos indo para trás" em
questões da cidadania.
No plano mais geral, entende que o
desenvolvimento econômico brasileiro está acirrando os conflitos em torno da
terra --nas cidades e nas zonas rurais. E defende que "as forças
progressistas", que na sua visão abandonaram a pauta social, retomem
"essa luta".
A seguir, a íntegra.
*
Folha - Qual sua avaliação sobre
o caso Pinheirinho?
Raquel Rolnik - Como
relatora enviei um Apelo Urgente às autoridades brasileiras, chamando atenção
para as gravíssimas violações no campo dos direitos humanos que estão
acontecendo no processo de reintegração de posse no Pinheirinho. Posso apontar
várias dessas violações. Minha base legal é o direito à moradia adequada, que
está estabelecido nos pactos e resoluções internacionais assinados pelo Brasil
e que estão em plena vigência no país.
O grande pano de fundo é que não se
remove pessoas de suas casas sem que uma alternativa de moradia adequada seja
previamente equacionada, discutida em comum acordo com a comunidade envolvida.
Não pode haver remoção sem que haja essa alternativa. Aqui se tem uma
responsabilização muito grave do Judiciário, que não poderia ter emitido uma
reintegração de posse sem ter procurado, junto às autoridades, verificar se as
condições do direito à moradia adequada estavam dadas. E não estavam.
O Judiciário brasileiro,
particularmente do Estado de São Paulo, não obedeceu à legislação
internacional. A cena que vimos das pessoas impedidas de entrar nas suas casas
e de pegar seus pertences antes que eles fossem removidos para outro local --isso
também é uma clara violação. Isso não existe! Nenhuma remoção pode deixar a
pessoa sem teto. Nenhuma remoção pode impor à pessoa uma condição pior do que
onde ela estava. São duas coisas básicas.
Nenhuma remoção pode ser feita sem
que a comunidade tenha sido informada e tenha participado de todo o processo de
definição do dia da hora e da maneira como isso vai ser feito e do destino de
cada uma das famílias.
Tudo isso foi violado. Já violado
tudo isso, de acordo com a legislação da moradia adequada, tem que fazer a
relação dos bens. Remoção só deve acontecer em último caso. Isso foi
absolutamente falho.
Essa área não poderia ser
decretada de importância social?
Não pode haver uso da violência nas
remoções, especialmente com crianças, mulheres, idosos e pessoas com
dificuldade de locomoção. Vimos cenas de bombas de gás lacrimogêneo sendo
jogadas onde tinham mulheres com crianças e cadeirantes. Coisa absolutamente
inadmissível.
Desde 2004 a ocupação existe e
acompanhei como ex-secretária nacional dos programas urbanos do Ministério das
Cidades. A comunidade está lutando pela urbanização e regularização desde 2004.
Procuramos várias vezes o então prefeito de São José dos Campos para equacionar
a regularização e urbanização.
O governo federal ofereceu recursos
para urbanizar e para regularizar a questão fundiária. O governo federal não
executa. O recurso é passado para municípios.
O que aconteceu?
Prefeito do PSDB jamais quis entrar
em qualquer tipo de parceria com o governo federal para viabilizar a regularização
e urbanização da área.
Por quê?
Pergunte para ele. Nunca quis
tratar. A urbanização e regularização da área seria a melhor solução para o
caso. A situação é precária do ponto de vista de infraestrutura, mas poderia
ser corrigida. Aquela terra é da massa falida da Selecta, que é um grande
devedor de recursos públicos, de IPTU. A negociação dessa área seria
facilitada.
Se poderia estabelecer com eles uma
dação em pagamento. Mesmo se não fosse viável uma dação em pagamento, a terra
poderia ser desapropriada por interesse social, pelo município, Estado ou
União.
Como fica a questão dos credores
da massa falida?
Não sei quantos e quais são os
credores. Recebi informações, que não sei se estão confirmadas, de que os
maiores credores são os próprios poderes públicos, prefeitura municipal, Estado
e governo federal, dívidas de INSS e impostos com o governo federal,
principalmente dívidas com o município e governo federal. Não tenho certeza.
Faz todo o sentido o equacionamento dessa terra para os poderes públicos e a
posterior regularização fundiária para os moradores.
Como a sra. analisa a questão da
disputa partidária no episódio, envolvendo PSDB, PT. O PSTU jogou para o
confronto? Poderia ter solução sem confronto?
Não podemos ignorar que a questão
partidária intervém nessa questão e em muitas outras. Há presença do conjunto
dos partidos do país na disputa dos conflitos fundiários, assim como no
investimento, regularização e urbanização dessas áreas. Existe a questão
partidária e ela foi explorada nesse caso.
A questão fundiária do Brasil é
politizada integralmente. Não só nesse caso. Há presença dos partidos também no
momento que se muda o zoneamento da cidade para atender os anseios de
determinados grupos imobiliários que vão doar para determinadas campanhas. Não
tem processo decisório sobre a terra no Brasil que não esteja atravessado por
questões econômicas e políticas.
Independentemente disso, atender
plenamente aos direitos dos cidadãos tem que ser cobrado por nós, cidadãos
brasileiros. Não quero saber se o PT, o PSDB, o PSTU estão querendo tirar
dividendos disso. Como cidadã, isso não interessa. O que interessa é que o
cidadão, as pessoas têm que ser tratadas como cidadãos, independentemente da
sua renda, independente se são ocupantes formais ou informais da terra que
ocupam, independentemente da sua condição de idade, gênero.
Não pode haver diferença e nesse
caso houve claramente um tratamento discriminatório. E isso a lei brasileira
impede que seja feito. Então há uma violação.
O PSTU jogou para o confronto?
Não tenho detalhes de como cada uma
das lideranças agiu antes e durante a entrada da polícia. Se houve um líder que
conclamou à violência, essa informação eu não tenho. É fato que a comunidade
procurou resistir, porque acreditou que aquela liminar que suspendia a
reintegração ainda estava válida. Por isso resistiu. Pode ter alguém
conclamando à resistência ou não. Se a comunidade vai entrar nessa ou não,
depende da própria avaliação que a comunidade faz: se ela tem chance de ficar
ou não. A comunidade acreditou que a liminar estava suspensa e estava apostando
em uma solução que estava em andamento.
Chamo atenção para a enorme
irresponsabilidade do Judiciário nesse caso. Tínhamos uma situação de
negociação em andamento. Sou contra [o confronto]. Sou absolutamente a favor de
soluções pacíficas e, nesse caso, elas não foram esgotadas. Um contingente de
1.800 homens, helicópteros, usando elemento surpresa, uma linguagem de guerra.
Como avalia PT e PDSB nesse caso.
A sra é do PT, não?
Não. Eu aqui falo como relatora dos
direitos à moradia adequada. A questão partidária que existe é irrelevante. Os
direitos dos cidadãos precisam ser respeitados.
O que se deve esperar como
consequência concreta desse Apelo? A sra. acredita que possa haver reversão
desse processo?
As autoridades têm 48 horas para
responder ao Apelo. Confirmando ou não as informações de violação. Estamos
alegando que houve informações sobre feridos, eventualmente mortes, que não
houve. O Apelo é mandado para a missão permanente do Brasil em Genebra, que
manda para o Ministério das Relações Exteriores e o MRE é quem faz o contato
com a prefeitura, o governo do Estado e os órgãos do governo federal para
responder.
Amanhã [hoje] faço um pronunciamento
público. Nele peço que seja imediatamente suspenso o cerco policial, que se
estabeleça uma comissão de negociação independente, com a participação da
prefeitura, governo do Estado, governo federal e representação da própria
comunidade, para que se possa encontrar uma solução negociada para o destino da
área e das famílias. Que é a questão principal: o destino das famílias. Na
minha opinião, idealmente, isso deveria envolver a própria área.
A sra. não descarta a hipótese
das famílias voltarem para a mesma área?
Não descarto. Se houver um acordo
em torno da questão da terra, inclusive com a massa falida da Selecta, seria
possível. O mais importante: temos que acabar com esse tipo de procedimento nas
reintegrações de posse no Brasil.
Não é só no Pinheirinho que estão
acontecendo violações. Tenho denunciado como relatora que as remoções que estão
acontecendo também violações no âmbito dos projetos de infraestrutura para a
Copa e para as Olimpíadas. Menos dramáticas, talvez, do que no Pinheirinho, mas
igualmente não obedecendo o que tem que ser obedecido.
A questão social no Brasil ainda
é um caso de polícia?
Infelizmente tenho a sensação de
que estamos indo para trás. Porque nós --e a minha geração fez parte disso--
lutamos pelo Estado democrático de direito, pela questão da igualdade do
tratamento do cidadão, pela questão dos direitos humanos. Para nós, a partir da
Constituição isso virou um valor fundamental.
Nesta mesma Constituição se
reconheceu o direito dos ocupantes de terra com moradia, que ocuparam por não
ter outra alternativa.
Está na Constituição e, agora que o
Brasil está virando gente grande do ponto de vista econômico, estamos voltando
para trás no que diz respeito a esses direitos. Estamos assistindo a remoções
sendo feitas sem respeitar [esses direitos]. Estamos assistindo um discurso
totalmente absurdo --de que eles, que ocupam áreas, que não tiveram outra
alternativa, são invasores. Como eles não obedeceram a lei, não temos que
obedecer lei nenhuma com eles.
É um discurso pré-Constituinte.
Isso foi amplamente reconhecido na Constituição. Tem artigo sobre isso. Estamos
tratando essas questões não só aí [no Pinheirinho]. Veja como isso está sendo
tratado na cracolândia. Vemos isso em várias remoções nos casos da Copa e das
Olimpíadas. Simplesmente há um discurso: eles são invasores, não obedeceram a
lei, para eles não vale nada da lei. Estamos picando a Constituição.
Por que estamos indo para trás?
É preciso ver como se foi
constituindo uma pauta dominante. Como a pauta da inclusão social acabou sendo
sinônimo apenas da inclusão no mercado, via melhoria das condições de renda. A
inclusão no campo cidadão acabou tendo um papel muito menor e menos importante.
Nesse momento de desenvolvimento
econômico muito importante, as terras urbanas e rurais adquirem um enorme valor
econômico. Os conflitos em torno da terra estão sendo acirrados em função
disso, dado o enorme e importante valor que a terra está assumindo. A
exacerbação dos conflitos de terra tem a ver com o aumento do interesse pela
terra.
Qual sua visão sobre os
incêndios em favelas em São Paulo?
Que favelas pegam fogo em São
Paulo? As favelas melhor localizadas. Não vejo notícia de favela pegando fogo
na extrema periferia na região metropolitana, que é onde mais tem favela.
Qual é a sua hipótese?
A hipótese tem a ver com a
importância estratégica de uma parte da terra ocupada por favelas --a
importância estratégica para o mercado imobiliário de uma parte da terra
ocupada por favelas. Trata-se de uma espoliação: uma terra valiosa em que você
tira a favela e pode atualizar o seu valor. Dentro de um modelo em que o único
valor que importa é o valor econômico e os outros valores não importam, tirar
essa terra valiosa de uma ocupação de baixa renda faz sentido.
Mas a terra tem outros valores. Por
exemplo, a função social da terra, outra coisa que está escrita na nossa
Constituição. Não estou afirmando que esses incêndios sejam criminosos, porque
não tenho nenhuma prova, nenhuma referência que me permita dizer isso.
Entretanto, acho fundamental que esses incêndios sejam investigados. Por que
esses incêndios estão ocorrendo agora exatamente nessas favelas?
Como a sra. analisa a questão da
Cracolândia?
Tem muito a ver com isso tudo,
embora existam outros direitos humanos envolvidos. Estamos fazendo um Apelo
Urgente também sobre a cracolândia, conjuntamente com o relator para direitos
da saúde e com o relator sobre tratamento desumano e tortura. Devemos enviar
brevemente.
Estamos numa situação em que um
projeto urbanístico, que é o da Nova Luz, tem como principal instrumento a
concessão dessa área integralmente para a iniciativa privada. A viabilização
para a concessão dessa área é entregar essa área "limpinha".
"Limpinha" significa sem nenhuma população vulnerável, marginal,
ambígua sobre ela. E, no máximo possível, com imóveis demolidos, para permitir
que se faça um desenvolvimento imobiliário com coeficiente de aproveitamento
muito maior, prédios mais altos etc. E, portanto, com muito mais potencial de
valor no mercado. Isso está diretamente relacionado ao modelo da concessão
urbanística.
No plano urbanístico da Nova Luz,
um dos principais princípios é liberar áreas dos imóveis e das pessoas que
ocupam hoje, para permitir que essas áreas sejam incorporadas pelo mercado
imobiliário com potenciais de aproveitamento maiores.
Tenho uma crítica do ponto de vista
dos direitos humanos, da forma como tem sido feito. Como no caso do
Pinheirinho: uso da violência policial e incapacidade de diálogo com a
população. Mas também como urbanista tenho uma enorme crítica a esse plano da
Nova Luz, que desrespeita o patrimônio material e imaterial ali presente. O
bairro da Santa Ifigênia é o bairro mais antigo de São Paulo. É o único que
ainda tem uma morfologia do século 18. Uma parte dos imóveis que está sendo
demolida, supostamente interditada, deveria ser restaurada e reocupada. A ação
é duplamente equivocada --do ponto de vista urbanístico e dos diretos humanos.
Como a sra. resume toda essa
situação? É um processo de expulsão dos mais pobres?
Exatamente. Eu me recuso a chamar
aquele local de cracolândia, porque foi um termo forjado pela Prefeitura de São
Paulo. O fato de essa área estar ocupada por pessoas viciadas, que estão no
limite da inumanidade, foi produto da ação da prefeitura, que entrou nessa área
demolindo, largando a área, não cuidando da área, deixando acumular lixo e
transformando essa área em terra de ninguém.
Isso é fruto da ação da prefeitura
e não da falta de ação da prefeitura. Para depois chamar de cracolândia e
depois constituir um motivo para entrar dentro dessa área derrubando tudo,
prendendo todo mundo e limpando aquela área como terra arrasada para que uma
ação no mercado imobiliário possa acontecer.
Qual é o panorama geral?
Estamos caminhando perigosamente no
sentido da hegemonia do valor econômico da terra como único valor,
desconstituindo avanços importantes que a sociedade brasileira fez no
reconhecimento do direito de cidadania. Isso é muito perigoso para o país.
Espero sinceramente que a partir da comoção do debate gerado sobre o
Pinheirinho se possa reverter esse caminho.
A sra. está otimista?
O Brasil tem a faca e queijo na mão
para poder mudar radicalmente de atitude. O Brasil tem recursos econômicos. Tem
um ordenamento jurídico que permite respeitar os direitos.
O Judiciário tem que acordar para
aplicar não apenas o direito de propriedade nos processos que envolvam
conflitos de propriedade, mas também o resto do ordenamento jurídico que temos.
Os Executivos municipais, estaduais
e federais também têm que rever a sua ação no sentido de obedecer isso. Temos
recursos e temos uma base jurídica para poder recuperar esse caminho.
O modelo hoje beneficia os mais
ricos?
É muito genérico falar dos mais
ricos. É preciso ver quais são os interesses beneficiados e que não estão sendo
beneficiados. Qual é a coalizão de interesses que está promovendo esse tipo de
ação.
Temos que entender que sempre
existiram forças conservadoras no país. Por que hoje elas têm mais força, mais
poder? As forças progressistas abandonaram essa pauta e essa agenda e precisam
retomá-las. Existem forças progressistas no Brasil.
Abandonaram a pauta social por
quê?
Porque privilegiaram
fundamentalmente a inclusão pelo consumo, o maior poder de compra, a
valorização de salário, que são pautas fundamentais. Mas não pode ser só isso.
Está na hora das forças progressistas retomarem essa luta.